Massacre da juventude
por Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
“Tá lá o corpo estendido no chão, em vez de rosto, uma foto de um gol;
Em vez de reza, uma praga de alguém, e um silêncio servindo de amém”.
O bar mais perto depressa lotou, malandro junto com trabalhador;
Um homem subiu na mesa do bar e fez um discurso para vereador.
Veio um camelô vender anel, cordão, perfume barato,
E a baiana pra fazer pastel e um bom churrasco de gato.
Quatro horas da manhã baixou o santo na porta-bandeira,
E a moçada resolveu parar e então... tá lá o corpo estendido no chão.
Sem pressa foi cada um pro seu lado, pensando numa mulher ou num time;
Olhei o corpo no chão e fechei minha janela de frente pro crime”.
(João Bosco, De frente pro crime)
A canção de João Bosco sugere uma leitura, ao mesmo tempo, polifônica e polissêmica da violência no universo urbano. Polifônica, na medida em que estão em jogo linguagens sobrepostas, tais como ao do malandro mesclada com a do trabalhador, a do candidato a vereador, a do camelô, a da baiana do pastel, a da moçada, como também a dos curiosos que vão se juntado no bar e na rua. Polissêmica, porque os símbolos expressam significados e enfoques diversos, de acordo com o olhar de cada protagonista: o comerciante, o político, o observador à janela, a multidão de transeuntes. O silêncio, por exemplo, nos remete tanto ao “amém” coletivo da oração quanto à indiferença individual de quem se dispersa “pensando numa mulher ou num time” ou de quem “fecha a janela de frente pro crime”.
Corpos estendidos no chão, círculo de curiosos e de policiais, sirenes de ambulância, comentários diversificados e contraditórios, holofotes e câmeras, repórteres e microfones, familiares em cabisbaixos, mães em desespero, peritos da criminologia... Tudo isso forma um cenário bem conhecido não apenas de São Paulo e Rio de Janeiro, mas também, atualmente, de todas as capitais brasileiras e de não poucas cidades médias e até pequenas. Isso para nos limitarmos ao mundo urbano, pois a zona rural brasileira não é menos pródiga em cadáveres expostos, resultado dos conflitos pela posse da terra.
Mas as estatísticas costumam ter uma visão mais aguçada do que o olhar nu. Ou seja, ao somar, multiplicar e comparar, os estudiosos tiram conclusões que o olho humano não é capaz de enxergar. Uma dessas conclusões, talvez a mais imediata, é que grande parte dos corpos estendidos pelo chão pertencem a pessoas entre os 15 e 25 anos, ou seja, são adolescentes e jovens. Acrescente-se a isso o fato de boa quantidade deles ter sido executada pelos próprios comparsas nas disputas pelo mercado clandestino do narcotráfico ou, mais grave ainda, por grupos para-militares constituídos para esse fim. E não podemos esquecer que uma porcentagem nada desprezível jamais havia passado pela policia, ou se envolvido contato com o crime e a droga. Que o digam as centenas de mães, pais, irmãos e famílias, órfãs de seus filhos, muitos dos quais trabalhadores assíduos e sem ficha criminal.
Quanto aos que são assassinados no confronto direto com as forças policiais, ou por estas eliminados antes de chegar à delegacia, uma série de perguntas se levantam. Por que são tão facilmente aliciados para a violência, o narcotráfico, o crime e o consumo de drogas? Boa parte estaria na escola, se as famílias de onde se originam não vivessem em condições tão precárias. Outros, concluídos os estudos e devidamente capacitados, poderiam já estar empregados, não fossem as empresas tão rígidas quanto à necessidade de experiência prévia. De uma forma ou de outra, um fundo de exclusão social explica os males da superfície.
Há, entretanto, uma pergunta mais inquietante: por que tantos jovens de classe média ou média baixa, com todas as condições de se capacitarem, formam gangues com o objetivo puro e simples da violência? Não são raros os casos de grupos racistas, fundamentalistas ou neofacistas perpetrarem uma série de agressões ao povo da rua, aos travestis e às mulheres prostituídas, como também às minorias étnicas em geral. Inclui-se aqui, por exemplo, os ataques a nordestinos, imigrantes, negros e indígenas. Os grupos extremistas e extremamente violentos de funk e skinheads semeiam o medo e às vezes a morte para aqueles que se aventuram pela vida noturna das cidades.
De onde vem semelhante comportamento agressivo? A verdade é que a sociedade moderna ou pós-moderna retirou da família o direito e o dever de impor limites às crianças, adolescentes e jovens. Instituições como a escola, as igrejas, os diversos tipos de esporte, as associações e movimentos sociais não conseguem tomar a si essa tarefa. Sobra para a polícia impor limites, mas aí já é tarde demais! No fundo, o conceito de liberdade se reduz a fazer o que se quer, não o que constrói. Some-se agora, de um lado, a vulnerabilidade de grande parte da população, o desemprego e subemprego, a dificuldade de estabelecer limites no processo formativo e, de outro lado, a facilidade de acesso às armas e drogas, os apelos e a permissividade solta, resulta o fácil aliciamento para o crime organizado. Numa palavra, por que estudar e trabalhar se há vias mais curtas para a riqueza e o sucesso? Por que seguir pela estrada legítima se os atalhos encurtam caminho? Para usar uma expressão cara a Galimberti, o “futuro-promessa” tornou-se “futuro-ameaça” (GALIMBERTI, Umberto, in L’ospite inquietante, Il nichilismo e i giovani, Ed. Feltrinelli, Roma, 2007).
Os analistas sociais, porém, não param por aí. Confirmam com suas estatísticas aquilo que nós intuímos no dia-a-dia. Uma porcentagem maior de negros faz parte do número de “corpos estendidos no chão”. Estigmatizados desde os tempos da escravidão, seguem sendo as principais vítimas do extermínio diário. Razões não faltam para isso. Originários de famílias historicamente mais vulneráveis, exibem imensas dificuldades de acesso à escola, em particular aos estudos superiores. Tendo uma qualificação profissional relativamente inferior, encontram maiores dificuldades de empregos bem remunerados, o que agrava ainda mais a situação precária da família. E assim se fecha o círculo vicioso.
Convém sublinhar que, nesse fator de exclusão, pesa igualmente o racismo implícito ou explicito da sociedade brasileira. O texto da Lei Áurea, assinado pela Princesa Isabel a 13 de maio de 1888 – abolição da escravatura – deixava à população negra um legado de liberdade mesclada com miséria e falta de reais oportunidades. Mais do que os negros, foram os senhores escravagistas que se livraram de uma mão-de-obra custosa para adotar a compra e venda do trabalho assalariado, característica da economia capitalista (MARTINS, Jose de Souza, in O Cativeiro da Terra). Fechados os caminhos largos do trabalho e do emprego decente, sobra em geral para os afro-brasileiros os serviços mais pesados e perigosos, mais sujos e mal remunerados. Igual sina sofrem, aliás, os imigrantes em situação irregular.
A canção de João Bosco traz à tona, ainda, a solidão e o anonimato da cidade. O corpo estendido no chão parece desfigurado, não tem rosto, não é identificado. Há uma única alusão à “foto de um gol”, como se ali estivessem seus laços mais sagrados. Não há familiares para chorar e rezar sua partida tão repentina. Provavelmente será transladado para o Instituto Médico Legal (IML) e, em seguida, enterrado como indigente. Sobre o corpo, em lugar de mármore, flores e um respeitoso “aqui jaz”, apenas um monte de terra com uma cruz e um número. Nem sequer um nome, tão somente um número na imensidão do mar urbano!
Conclui-se que questões de classe e de racismo se fundem para a eliminação precoce dos pobres e dos negros. Simultaneamente dentro e fora do cenário, os curiosos, os transeuntes, os malandros e trabalhadores do bar e o observador solitário – se afastam “cada um pro seu lado”, já com o pensamento fixo “numa mulher ou num time”; ou então fechando “a janela de frente pro crime”. O massacre contínuo da juventude, aos milhares e milhões por ano, cai numa indiferença generalizada. A mídia, qual bando de abutres, se debruça sobre cada vítima; a polícia, imune e impune, se utiliza da farda para atirar antes de pedir os documentos; os noticiários sensacionalistas expõem letras garrafais ou corpos crivados de bala. Espetacularizar alguns casos e o mesmo que legitimar a violência diária. Com efeito, os espetáculos exibem os extremos para cristalizar e naturalizar o cotidiano.
Enquanto isso, a multidão segue solitária e com pressa, formando rios humanos que desembocam nos terminais de ônibus, estações de metrô ou nas lojas, que fascinam e seduzem com seus artigos novos e reluzentes. Um transeunte transtornado solta gritos e lágrimas; um bêbado anônimo substitui a oração por uma praga; um terceiro se dá conta que isso é coisa diária... “Tá lá o corpo estendido no chão”.
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Para aprofundar o tema, sugiro o seguinte artigo (de Capa) da Revista Carta Capital:
Para abrir, ler melhor, clique sobre as imagens e tecle para aumentar no tamanho original.
Tá lá o corpo estendido no chão da sociedade tão preocupada com o final da novela das oito, no último lançamento tecnológico, no que vai sair na capa da revista caras, nos realitis shows da tv, quem vai ser a próxima a sair na playboy, o que a Sandy disse no face book e no twitter, enfim... enquanto isso continua lá o corpo estendido no chão.
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