segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O NEGRO E AS ELEIÇÕES...


Antes de publicar aqui o artigo de um amigo, refletindo sobre o processo eleitoral de 2012, relacionado com o Negro, gostaria de favorecer um pensamento importante que veio nesse contexto a nos questionar, junto desta imagem:

É preciso forjar o espírito revolucionário!


O NEGRO E AS ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2012

  por Flávio José dos Passos *

Diferentemente de alguns partidos moldados a partir de rearranjos de legendas, muitas vezes mais para esconder seus passados de coronelismos e oligarquias, o Partido dos Trabalhadores vive um dos seus momentos mais propícios a crescer em sintonia com suas origens, com os anseios e demandas sociais brasileiras, latino-americanas, e afrodiaspóricas. Este texto se propõe uma breve reflexão, a partir dos resultados das últimas eleições municipais e de uma matéria ("PT Repaginado") veiculada na Revista “IstoÉ” (1.nov.2012), a qual aborda as mudanças dentro do partido, em curso desde a eleição de Dilma, numa estratégia de se priorizar nomes técnicos, em detrimento dos talvez desgastados nomes políticos. A quem interessa tal distinção? Quais seus impactos em termos de democratização racial da gestão pública?
É fácil perceber que dentre os nomes técnicos destacados pela Revista não há nenhum (a) negro (a). Vale lembrar que dentre os negros que mais ascenderam nas três primeiras décadas do PT, duas chegaram a ministras (Benedita da Silva e Matilde Ribeiro), a primeira, política, a segunda mais técnica. Hoje, Luiza Bairros, atual ministra da Igualdade Racial, une as duas características e, provavelmente, isso lhe esteja garantido forças para resistir às pressões inerentes a um cargo como este.
Mesmo elencando as três militantes ministras, são raros os exemplos de negros e negros que se destacaram nos governos de esquerda, simplesmente, porque também foram raros os que lá chegaram, seja em Brasília, seja nas capitais, seja nas assembleias e nos mais de cinco mil municípios brasileiros. Desde a conclusão do primeiro turno das eleições de 2012, procuro alguma análise mais séria sobre a participação de negros (as) nas eleições de 2006 a 2012. Seria fundamental se os institutos de pesquisa ou análises políticas fizessem uma leitura do quanto avançou (ou não) o processo de democratização dos quadros partidários, na perspectiva de gênero e/ou raça.
Nas primeiras décadas do PT, a militância que mais prevaleceu à frente da direção do partido foi um determinado grupo branco reunido em torno da agenda sindical e intelectual, com raros destaques negros, não obstante a força da participação de lideranças do Movimento Negro nesse mesmo período, dentro e fora dos partidos de esquerda. Nos anos subsequentes, principalmente com o aumento da presença do PT na governança de municípios e estados, essa tendência (louvável, pelo caráter da qualidade da política pública que se desenvolve nos governos mais técnicos) de se priorizar o técnico em detrimento do político, se transforma em um dos fatores de aprofundamento do embranquecimento dos quadros parlamentares e executivos país afora.
Este fenômeno já é sentido não apenas na política partidária e nos governos, mas nos concursos públicos, cada dia exigindo maior formação técnica e acadêmica, e também na composição dos quadros docentes no ensino superior. Naturalizarmos a ausência de negros nos espaços estratégicos de poder seria não percebermos o racismo agindo por dentro das estruturas sociais. Até quando aceitaremos essa assimetria social e racial, mesmo sendo os negros a maioria ou significativa parcela da militância nos partidos de esquerda? Ou já não mais? Estariam os pobres (negros, em sua maioria) engrossando as estatísticas cada dia maiores das abstenções, do voto nulo ou de protesto? Seria uma forma de protesto, de indignação, de manifestação de uma consciência política a colocar em xeque a própria política?
Uma consequência trágica da tecnicização da política é que os governos começam a tratar as decisões políticas sob a perspectiva do mercado. Como fica o sentido moral das decisões políticas em um governo sem coracão? Um exemplo disso é há um modelo de política regido por uma pseudo intelectualidade tecnocrata, branca, hétero, masculina, cristã, de classe média em ascensão, que tem transformado a cidade em mercadora. Este modelo está mais interessado em manter a cidade (entende-se a parte “trafegável” do perímetro urbano) limpa (na perspectiva higienista mesmo) e acessível à classe média, ávida por liberdade de acesso aos bens de consumo.
Há um modelo questionado e reprovado nas urnas nas últimas eleições, por ter elegido o outro (pobre, mulher, negro, homossexual, indígena, quilombola, cigano, povo de santo, sem-terra, sem teto, subempregado, jovem negro dos morros, criança em situação de rua, desempregado, morador de rua, grupos tradicionais) como ameaça, atraso, estranho, como gente de segunda categoria, passível de ser menos prezada, menos cuidada.
Por sua trajetória, o PT talvez se encontre frente a um dilema de origem, qual seja, reproduzir as estruturas de poder que não permitem a efetiva participação e soberania popular ou, romper com esse modelo e fazer refletir em seus quadros a diversidade das urnas. O projeto aprovado pelo povo em três eleições presidenciais e inúmeras eleições municipais petistas mostra que o povo quer o “outro” nos espaços de poder.
No entanto, esse mesmo povo pode corre o risco de ser transformado em um “totalmente outro” ao qual a indiferença da sociedade é expressa em um “deixar morrer” que se converte em uma eficiente “necro-política” estatal “com forte componente racial”, termos cunhados pelo antropólogo Jaime Amparo Alves no texto “As eleições na Bahia: a derrota de Pelegrino e o recado ao governador”, publicado dia 29 de outubro (http://comraivaepaciencia.blogspot.com.br/). Leonardo Boff lembra que a construção da democracia no Brasil passa premente ruptura radical da forma como a sociedade se relaciona com o negro, não mais o reduzindo a um mero objeto, mas o reconhecendo como sujeito da própria história e da própria vida.
Nas décadas de 30 e 40 do século XX, tivemos alguns movimentos do negro na política partidária brasileira, não entrando aqui no mérito do caráter ideológico de alguns desses movimentos. O PT tem suas bases em diversas lutas que, diferente da luta contra a ditadura, não caíram em desuso ou se tornaram anacrônicas com a democratização do país. Ao contrário, nas últimas décadas várias temáticas tidas como "de minoria" ganharam o centro das discussões políticas e intelectuais, principalmente com respeito à diversidade de gênero, de raça e de religião.
Mas, o que mudou na “sala de jantar”? Quantas mulheres negras se candidataram? Quantas foram eleitas? Quantos homossexuais se candidataram e foram eleitos? Quantos eleitos vieram de comunidades tradicionais? Não se pode isentar o partido sob o pretexto de que a sociedade que é preconceituosa, pois também as instituições refletem as mazelas sociais de nosso tempo. Quantos candidatos negros tiveram aporte financeiro e prioridade na legenda para as suas candidaturas terem êxito? Em quantas reuniões com marqueteiros de campanha a temática étnico-racial foi suprimida da pauta sob a alegação de que “isso tira voto”? Em Salvador, com mais de 85% da população negra, o máximo que avançamos agora - a vice ser negra e militante - nos igualou a uma estratégia da direita.
O PT já tem estrada o suficiente pra fazer acontecer um caminho através do qual chegássemos a um grau de maturidade cidadã. Será que essas mudanças pragmáticas e programáticas em curso nas estruturas dos partidos de esquerda ainda temem uma ascensão negra? Ainda imperaria o temor de se ter de dividir o palanque, as planilhas das administrações, os secretariados, enfim, o projeto político do país? As mudanças em voga não poderiam apenas pautar a continuidade ou perpetuação de uma determinada sigla no poder, mas sim, a própria definição do que é o poder na democracia.
Não me convencem os discursos de que "vocês (negros) são divididos". Acredito que a nossa heterogeneidade não nos diminua. Antes, entendo-a como uma estratégia, desde a África, de estarmos para além da sobrevivência. Não somos divididos, somos diversos e entendemos ser a diversidade nossa maior riqueza. Não são partidos que irão nos encurralar. E, talvez, seja este o preço alto que pagamos por não nos curvarmos a uma lógica de mão única da politica pensada a partir da casa-grande para a senzala, a favela, a periferia e o quilombo. Mas, que fique essa reflexão de mão dupla. Pois, por mais que na última década tenhamos avançado em conquista de direitos para os povos tradicionais (quilombolas, terreiros, indígenas...), ainda somos uma nação cujo poder é exageradamente e assustadoramente branco, em sua forma, em seu discurso, em suas artimanhas de perpetuação.
Na última década, avançamos significativamente em leis e políticas de ações afirmativas, na área da educação das relações étnico-raciais, com a Lei 10.639/03; na regularização das terras quilombolas, com o Decreto 4.887/03; no direito à liberdade religiosa, com o Decreto 11.635/07, que institui o Dia Nacional de Combate à intolerância religiosa; na superação do racismo institucional; na democratização do acesso ao ensino superior através das cotas sociais e raciais nas universidades federais, com o Decreto 7824/2012; com a aprovação de cotas para negros nos concursos públicos. A criação e manutenção dos diversos organismos governamentais de promoção das políticas de igualdade racial sela este momento de busca de construção da equidade racial através das políticas públicas. Igualdade e superação do racismo, no entanto, não se conquistam por decretos. Avançamos, graças, muitas vezes, à nossa luta "zumbílica" que é de transformá-los em cotidiano dentro das plataformas e prioridades de ação dos governos e instituições. 
É indiscutível o protagonismo do PT na proposição de agendas das políticas de ações afirmativas e diversidade. Como também é notório o quanto Lula enquanto gestor e articulador político soube “fazer a coisa certa”. E foi sua histórica proximidade com os movimentos sociais que lhe permitiu fazer o que precisava ser feito. Nenhum gestor ou parlamentar, técnico ou político, carreirista ou militante, rico ou pobre, branco ou negro, pode se dar ao direito da ignorância de não saber o significado histórico e político de cada uma destas conquistas. E não apenas não ignorar, como não obstaculizar o processo de desenvolvermos políticas públicas de Estado que gere uma sociedade mais igualitária, superando o modelo universalista, quando não genocida, que, no último século, fez cristalizar nossas desigualdades raciais e sociais. 
Carlos Moore, na obra "Racismo e Sociedade" lembra que o racismo está na base das históricas hegemonias econômicas, políticas e militares. O racismo, segundo o autor, como sistema integrado total, é uma questão de monopólio e gestão racializada dos recursos de uma sociedade e do planeta (2006, p. 213). Arraigado em todas as instâncias do poder, principalmente a política, o racismo “tem como função específica blindar os privilégios do segmento hegemônico da sociedade (...) visando a manutenção de redes de solidariedade endógena automática em torno do fenótipo” (p. 212).
Enquanto nossa política for unilateral, de alguns se arvorando pensar e decidir pela maioria, haverá dominação, alienação e submissão. Contudo, e a história recente tem mostrado isso, a maioria não se sentirá representada. Haverá respostas, resistências, obrigado à mudança de paradigma. A política do século XXI será a da diversidade humana, a do diálogo verdadeiro, a do respeito e valorização das diferenças, a da superação das desigualdades historicamente construídas. Qualquer politica que não expressar estas dimensões, ainda terá fortes resquícios dos colonialismos que nos fizeram, negros e brancos, menos. Isto serve para o município, o estado, a nação. Serve para o Brasil, para os EUA e para o mundo. 
Na noite de 28 de outubro, na praça lotada de militantes, fiquei muito feliz quando, na conclusão do discurso da sua quarta vitória, Guilherme Menezes, o prefeito petista de Vitória da Conquista, cidade na qual, desde 2005, resido, trabalho, voto e milito, disse: "é inadmissível uma sociedade na qual exista discriminação das pessoas e na qual exista criminalização dos jovens pobres". Voltei pra casa com uma grande esperança no coração, a mesma que há mais de duas décadas, a cada dia, me desperta para a luta negra política (da qual a partidária é apenas um meio). A luta por uma sociedade com equidade continua e estamos cada dia mais fortalecidos, porque compreendemos que esta é a condição de consolidarmos uma verdadeira democracia!

P.s.: Grato pelas considerações feitas por Jaime Amparo Alves, Quelly Yunah, Thalles Victor Miranda, no processo de elaboração do texto.

* Flávio José dos Passos, 41 anos, militante em cursinhos comunitários e mestre em Antropologia pela PUC-SP, está assessor técnico em políticas de promoção da igualdade racial na Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, BA. Endereço Eletrônico: br2_ebano@yahoo.com.br

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