Antes de publicar aqui o artigo de um amigo, refletindo sobre o processo eleitoral de 2012, relacionado com o Negro, gostaria de favorecer um pensamento importante que veio nesse contexto a nos questionar, junto desta imagem:
É preciso forjar o espírito revolucionário! |
O NEGRO E AS ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2012
por Flávio José dos Passos *
Diferentemente de alguns partidos
moldados a partir de rearranjos de legendas, muitas vezes mais para esconder
seus passados de coronelismos e oligarquias, o Partido dos Trabalhadores vive
um dos seus momentos mais propícios a crescer em sintonia com suas origens, com
os anseios e demandas sociais brasileiras, latino-americanas, e afrodiaspóricas.
Este texto se propõe uma breve reflexão, a partir dos resultados das últimas eleições
municipais e de uma matéria ("PT
Repaginado") veiculada na Revista “IstoÉ” (1.nov.2012), a qual aborda
as mudanças dentro do partido, em curso desde a eleição de Dilma, numa
estratégia de se priorizar nomes técnicos, em detrimento dos talvez desgastados
nomes políticos. A quem interessa tal distinção? Quais seus impactos em termos
de democratização racial da gestão pública?
É fácil perceber que dentre os
nomes técnicos destacados pela Revista não há nenhum (a) negro (a). Vale
lembrar que dentre os negros que mais ascenderam nas três primeiras décadas do
PT, duas chegaram a ministras (Benedita da Silva e Matilde Ribeiro), a
primeira, política, a segunda mais técnica. Hoje, Luiza Bairros, atual ministra
da Igualdade Racial, une as duas características e, provavelmente, isso lhe esteja
garantido forças para resistir às pressões inerentes a um cargo como este.
Mesmo elencando as três militantes
ministras, são raros os exemplos de negros e negros que se destacaram nos
governos de esquerda, simplesmente, porque também foram raros os que lá
chegaram, seja em Brasília, seja nas capitais, seja nas assembleias e nos mais
de cinco mil municípios brasileiros. Desde a conclusão do primeiro turno das
eleições de 2012, procuro alguma análise mais séria sobre a participação de negros
(as) nas eleições de 2006 a
2012. Seria fundamental se os institutos de pesquisa ou análises políticas fizessem
uma leitura do quanto avançou (ou não) o processo de democratização dos quadros
partidários, na perspectiva de gênero e/ou raça.
Nas primeiras décadas do PT, a
militância que mais prevaleceu à frente da direção do partido foi um
determinado grupo branco reunido em torno da agenda sindical e intelectual, com
raros destaques negros, não obstante a força da participação de lideranças do
Movimento Negro nesse mesmo período, dentro e fora dos partidos de esquerda. Nos
anos subsequentes, principalmente com o aumento da presença do PT na governança
de municípios e estados, essa tendência (louvável, pelo caráter da qualidade da
política pública que se desenvolve nos governos mais técnicos) de se priorizar
o técnico em detrimento do político, se transforma em um dos fatores de aprofundamento
do embranquecimento dos quadros parlamentares e executivos país afora.
Este fenômeno já é sentido não
apenas na política partidária e nos governos, mas nos concursos públicos, cada
dia exigindo maior formação técnica e acadêmica, e também na composição dos
quadros docentes no ensino superior. Naturalizarmos a ausência de negros nos
espaços estratégicos de poder seria não percebermos o racismo agindo por dentro
das estruturas sociais. Até quando aceitaremos essa assimetria social e racial,
mesmo sendo os negros a maioria ou significativa parcela da militância nos partidos
de esquerda? Ou já não mais? Estariam os pobres (negros, em sua maioria)
engrossando as estatísticas cada dia maiores das abstenções, do voto nulo ou de
protesto? Seria uma forma de protesto, de indignação, de manifestação de uma
consciência política a colocar em xeque a própria política?
Uma consequência trágica da
tecnicização da política é que os governos começam a tratar as decisões
políticas sob a perspectiva do mercado. Como fica o sentido moral das decisões
políticas em um governo sem coracão? Um exemplo disso é há um modelo de
política regido por uma pseudo intelectualidade tecnocrata, branca, hétero,
masculina, cristã, de classe média em ascensão, que tem transformado a cidade em mercadora. Este
modelo está mais interessado em manter a cidade (entende-se a parte “trafegável”
do perímetro urbano) limpa (na perspectiva higienista mesmo) e acessível à classe
média, ávida por liberdade de acesso aos bens de consumo.
Há um modelo questionado e
reprovado nas urnas nas últimas eleições, por ter elegido o outro (pobre, mulher,
negro, homossexual, indígena, quilombola, cigano, povo de santo, sem-terra, sem
teto, subempregado, jovem negro dos morros, criança em situação de rua, desempregado,
morador de rua, grupos tradicionais) como ameaça, atraso, estranho, como gente
de segunda categoria, passível de ser menos prezada, menos cuidada.
Por sua trajetória, o PT talvez se
encontre frente a um dilema de origem, qual seja, reproduzir as estruturas de
poder que não permitem a efetiva participação e soberania popular ou, romper
com esse modelo e fazer refletir em seus quadros a diversidade das urnas. O
projeto aprovado pelo povo em três eleições presidenciais e inúmeras eleições
municipais petistas mostra que o povo quer o “outro” nos espaços de poder.
No entanto, esse mesmo povo pode
corre o risco de ser transformado em um “totalmente outro” ao qual a
indiferença da sociedade é expressa em um “deixar morrer” que se converte em uma
eficiente “necro-política” estatal “com forte componente racial”, termos
cunhados pelo antropólogo Jaime Amparo Alves no texto “As eleições na Bahia: a
derrota de Pelegrino e o recado ao governador”, publicado dia 29 de outubro (http://comraivaepaciencia.blogspot.com.br/).
Leonardo Boff lembra que a construção da democracia no Brasil passa premente ruptura
radical da forma como a sociedade se relaciona com o negro, não mais o
reduzindo a um mero objeto, mas o reconhecendo como sujeito da própria história
e da própria vida.
Nas décadas de 30 e 40 do século
XX, tivemos alguns movimentos do negro na política partidária brasileira, não
entrando aqui no mérito do caráter ideológico de alguns desses movimentos. O PT
tem suas bases em diversas lutas que, diferente da luta contra a ditadura, não
caíram em desuso ou se tornaram anacrônicas com a democratização do país. Ao
contrário, nas últimas décadas várias temáticas tidas como "de
minoria" ganharam o centro das discussões políticas e intelectuais,
principalmente com respeito à diversidade de gênero, de raça e de religião.
Mas, o que mudou na “sala de
jantar”? Quantas mulheres negras se candidataram? Quantas foram eleitas?
Quantos homossexuais se candidataram e foram eleitos? Quantos eleitos vieram de
comunidades tradicionais? Não se pode isentar o partido sob o pretexto de que a
sociedade que é preconceituosa, pois também as instituições refletem as mazelas
sociais de nosso tempo. Quantos candidatos negros tiveram aporte financeiro e
prioridade na legenda para as suas candidaturas terem êxito? Em quantas
reuniões com marqueteiros de campanha a temática étnico-racial foi suprimida da
pauta sob a alegação de que “isso tira voto”? Em Salvador, com mais de 85% da
população negra, o máximo que avançamos agora - a vice ser negra e militante - nos
igualou a uma estratégia da direita.
O PT já tem estrada o suficiente
pra fazer acontecer um caminho através do qual chegássemos a um grau de
maturidade cidadã. Será que essas mudanças pragmáticas e programáticas em curso
nas estruturas dos partidos de esquerda ainda temem uma ascensão negra? Ainda imperaria
o temor de se ter de dividir o palanque, as planilhas das administrações, os
secretariados, enfim, o projeto político do país? As mudanças em voga não
poderiam apenas pautar a continuidade ou perpetuação de uma determinada sigla no
poder, mas sim, a própria definição do que é o poder na democracia.
Não me convencem os discursos de
que "vocês (negros) são divididos". Acredito que a nossa heterogeneidade
não nos diminua. Antes, entendo-a como uma estratégia, desde a África, de
estarmos para além da sobrevivência. Não somos divididos, somos diversos e
entendemos ser a diversidade nossa maior riqueza. Não são partidos que irão nos
encurralar. E, talvez, seja este o preço alto que pagamos por não nos curvarmos
a uma lógica de mão única da politica pensada a partir da casa-grande para a
senzala, a favela, a periferia e o quilombo. Mas, que fique essa reflexão de
mão dupla. Pois, por mais que na última década tenhamos avançado em conquista
de direitos para os povos tradicionais (quilombolas, terreiros, indígenas...),
ainda somos uma nação cujo poder é exageradamente e assustadoramente branco, em
sua forma, em seu discurso, em suas artimanhas de perpetuação.
Na última década, avançamos significativamente
em leis e políticas de ações afirmativas, na área da educação das relações
étnico-raciais, com a Lei 10.639/03; na regularização das terras quilombolas,
com o Decreto 4.887/03; no direito à liberdade religiosa, com o Decreto 11.635/07,
que institui o Dia Nacional de Combate à intolerância religiosa; na superação
do racismo institucional; na democratização do acesso ao ensino superior
através das cotas sociais e raciais nas universidades federais, com o Decreto
7824/2012; com a aprovação de cotas para negros nos concursos públicos. A
criação e manutenção dos diversos organismos governamentais de promoção das
políticas de igualdade racial sela este momento de busca de construção da
equidade racial através das políticas públicas. Igualdade e superação do
racismo, no entanto, não se conquistam por decretos. Avançamos, graças, muitas
vezes, à nossa luta "zumbílica" que é de transformá-los em cotidiano
dentro das plataformas e prioridades de ação dos governos e instituições.
É indiscutível o protagonismo do
PT na proposição de agendas das políticas de ações afirmativas e diversidade.
Como também é notório o quanto Lula enquanto gestor e articulador político
soube “fazer a coisa certa”. E foi sua histórica proximidade com os movimentos
sociais que lhe permitiu fazer o que precisava ser feito. Nenhum gestor ou
parlamentar, técnico ou político, carreirista ou militante, rico ou pobre,
branco ou negro, pode se dar ao direito da ignorância de não saber o
significado histórico e político de cada uma destas conquistas. E não apenas
não ignorar, como não obstaculizar o processo de desenvolvermos políticas
públicas de Estado que gere uma sociedade mais igualitária, superando o modelo
universalista, quando não genocida, que, no último século, fez cristalizar
nossas desigualdades raciais e sociais.
Carlos
Moore, na obra "Racismo e Sociedade"
lembra que o racismo está na base das históricas hegemonias econômicas,
políticas e militares. O racismo, segundo o autor, “como sistema integrado total, é uma questão de monopólio e gestão racializada dos
recursos de uma sociedade e do planeta” (2006, p. 213). Arraigado
em todas as instâncias do poder, principalmente a política, o racismo “tem como
função específica blindar os privilégios do segmento hegemônico da sociedade
(...) visando a manutenção de redes de solidariedade
endógena automática em torno do fenótipo” (p. 212).
Enquanto nossa política for
unilateral, de alguns se arvorando pensar e decidir pela maioria, haverá
dominação, alienação e submissão. Contudo, e a história recente tem mostrado
isso, a maioria não se sentirá representada. Haverá respostas, resistências,
obrigado à mudança de paradigma. A política do século XXI será a da diversidade
humana, a do diálogo verdadeiro, a do respeito e valorização das diferenças, a
da superação das desigualdades historicamente construídas. Qualquer politica
que não expressar estas dimensões, ainda terá fortes resquícios dos
colonialismos que nos fizeram, negros e brancos, menos. Isto serve para o
município, o estado, a nação. Serve para o Brasil, para os EUA e para o
mundo.
Na noite de 28 de outubro, na
praça lotada de militantes, fiquei muito feliz quando, na conclusão do discurso
da sua quarta vitória, Guilherme Menezes, o prefeito petista de Vitória da
Conquista, cidade na qual, desde 2005, resido, trabalho, voto e milito, disse:
"é inadmissível uma sociedade na qual exista discriminação das pessoas e
na qual exista criminalização dos jovens pobres". Voltei pra casa com uma
grande esperança no coração, a mesma que há mais de duas décadas, a cada dia,
me desperta para a luta negra política (da qual a partidária é apenas um meio).
A luta por uma sociedade com equidade continua e estamos cada dia mais
fortalecidos, porque compreendemos que esta é a condição de consolidarmos uma verdadeira
democracia!
P.s.: Grato pelas considerações feitas por
Jaime Amparo Alves, Quelly Yunah, Thalles Victor Miranda, no processo de
elaboração do texto.
* Flávio José dos Passos, 41 anos, militante em cursinhos comunitários e mestre em
Antropologia pela PUC-SP, está assessor técnico em políticas de promoção da igualdade
racial na Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, BA. Endereço
Eletrônico: br2_ebano@yahoo.com.br